segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A relação de contiguidade e similaridade na literatura infantil

Este breve texto é uma reflexão sobre a construção de sentidos por contigüidade e por similaridade e a sua aplicação a literatura infantil. Estes conceitos estão no livro Literatura Infantil: voz de criança, de Maria José Palo. 
Sabemos que o processo de significação é realizado a partir de operações mentais por associações. Estas, por sua vez, devidamente estimuladas, podem contribuir enormemente para o desenvolvimento cognitivo das crianças. Não que seja uma novidade para elas, já que certamente elas fazem uso dessas associações no seu dia-a-dia de forma espontânea. Na escola, os professores podem construir espaços onde tais construções possam não apenas ser exercitadas, mas pensadas, sistematizadas.
Quando nos deparamos com uma situação/texto que nos exige uma interpretação, inevitavelmente faremos, muito rapidamente, operações em níveis diferentes. Em se tratando da criança, obviamente que todo esforço recai na tentativa de fazê-la operar com esses processos mentais para que possa desenvolver melhor as sua potencialidade cognitiva. Deste modo, um programa de disciplina pautado no exercício prático desta relação, contribuirá para o crescimento intelectual e sensível da criança.
Vejamos alguns exemplos com textos bem conhecidos:
Quando a criança se depara com o conto de fadas Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, terá de se movimentar, em pelo menos duas direções: metafórica e metonímica. Os signos que aparecem no texto, para que sejam compreendidos, precisam aproximar-se das referências deste leitor com o mundo social em que vive e este processo geralmente se faz por  contiguidade. Para provocar um processo de ruptura nesta instância, deve-se recorrer ao processo de remetaforização por similaridade, escapando do já-estabelcido. Daí o exemplo dado pela autora com o livro chapeuzinho amarelo de Chico Buarque. Há também essa tentativa em Marcelo, Martelo, Marmelo, quando Ruth Rocha nos apresenta uma personagem que desloca o significado sedimentado do signo socialmente aceito, convencionado, para construir novos signos mais próximos das coisas (na visão da criança). Por associação contígua, operando com as coisas no mundo real, o personagem rompe com a relação estabelecida para criar novas.
Embora estejam fixos, imobilizados no papel, os signos organizados linearmente no texto estão em constante movimento no plano mental do leitor. Como a criança identifica o lobo como sendo o vilão da história? Como o seu sentimento em relação à personagem emerge durante a leitura? Os teóricos lingüistas e semióticos falam de uma relação metafórica e outra metonímica, isto é, uma relação por similaridade e outra por contiguidade. A relação similar, metafórica, ocorre quando dois signos apresentam independência entre si, mas que, por alguma razão, fundem-se. Assim, o "lobo", no sentido denotativo, é um animal selvagem, assim como “vilão”, também com sentido denotativo, significa pessoa que pratica ações ilícitas. A pergunta é: como o lobo virou o símbolo da vilania, da esperteza, do perigo, da imoralidade, do mau-caratismo na cultura ocidental? Dá-se aqui uma construção simbólica por associação em que lobo passou a significar perigo, astúcia, etc. Por conta de uma associação deliberada, erigiu-se uma metonímia por conta da significação com base em coisas reais - sociais ou naturais. Vale ressaltar ainda que vilão, na Idade Média, era todo aquele que morava na vila, portanto, não era nobre. Vemos aqui um outro processo metonímico, já que o vilão como sinônimo de mau caráter representa todos aqueles que não tinham status nobre e que, de alguma forma, era visto, pela nobreza, como pessoas sem princípios, provavelmente por representar alguma ameaça. A relação metonímica favorece, assim, a construção de estereótipos.
De certa forma, apesar do lobo já ter se cristalizado no Ocidente com este significado, poder-se-ia dar outro significado para o signo lobo, caso se quisesse fissurar uma metáfora já sedimentada. A metáfora propicia inscrições mais subjetivas porque elas sugerem mais do que dizem, exigindo muito mais uma atitude responsiva do leitor porque oferece mais possibilidades de significação. Já a compreensão por contiguidade, depende do movimento de associação entre as figuras que são dependentes entre si, mas que se aproximam por possuírem elementos que se tocam. Assim, chapeuzinho vermelho, personificada na figura de uma menina, associa-se por contiguidade às meninas-leitoras que estarão lendo o conto. Esta relação tende (ou não) a ratificar um comportamento por identificação. A floresta é também um signo metafórico que simboliza perigo, mistério, risco, ratificado na representação metafórica do lobo. Apesar de nesta instância operarmos com a metáfora, podemos dizer também, em relação ao lobo, que a sua antropomorfização corresponde a uma tentativa de aproximá-lo de outro signo constituído no plano social,  o ser humano, o homem. Assim,  existiria uma relação metonímica nos contos de fada cada vez que os signos fossem atualizados por simples associação do leitor com o mundo real ou com a simbologia já internalizada,  e que no ato de leitura só precisam ser acionadas. Mas, e se o texto subverte as representações internalizadas? Penso que ainda estaria buscando uma referência no plano real, social, cultural do indivíduo. O que seria, então, uma literatura infantil libertadora? Segundo Palo seria aquela que permitisse maior liberdade para o leitor no processo de significação, que sugerisse mais do que desse pronto, que se realizasse no plano do signo, da palavra. Em outras palavras: a criança seria motivada a pensar a realidade como algo construído (e que portanto pode ser descontruído, para citar uma expressão do filósofo argelino Jacques Derridá) e não algo pronto através de um processo de fissura no plano linguístico, sígnico. Assim, a relação lobo = mau caráter existe por relação metonímica, por contiguidade, materializado no plano social devido a humanização do lobo (ou antropomorfização) sedimentando a relação, diga-se universal, lobo/homem/maldade.

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